Gilmar Piolla rebate acusações da mídia

A tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai tem sido alvo constante de ações terroristas da imprensa brasileira e estrangeira. A revista Veja, edição de 6 de abril de 2011, trouxe na reportagem de capa uma lição de como não se deve fazer jornalismo. A matéria “A rede do terror no Brasil” é um requentado de um tema já batido e nunca comprovado: o de que extremistas islâmicos agem no Brasil, principalmente em São Paulo e – como sempre! – na tríplice fronteira.

Quase dez anos atrás, na edição de 22 de outubro de 2001, a revista Época já alarmava, também em matéria de capa: “O terror entre nós”. Movida pelo denuncismo vazio, sem provas, afirmava, em tom sensacionalista e pouco aprofundado: “Em Foz do Iguaçu, no Paraná, onde está a maior comunidade muçulmana do país, com 11 mil pessoas, terroristas procurados em vários países encontraram abrigo e conseguiram documentos falsos para poder viajar mundo afora e retomar suas ações criminosas”.

Em ambas as reportagens, com distância de uma década, o que há de comum são falsas e generalizadas acusações contra árabes que vivem na fronteira, baseadas em informações repassadas por “agentes” do serviço secreto dos Estados Unidos e de Israel e também atribuídas a anônimas fontes da polícia brasileira.

Até hoje, desde as primeiras suspeitas de que havia terroristas escondidos na tríplice fronteira – após os atentados em Buenos Aires, em 1992 e 1994 (que mataram, ao todo, 114 inocentes) –, a região entrou na mira dos órgãos de segurança dos Estados Unidos. E isso piorou depois dos atentados às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque.

Por conta desta fama a ela atribuída, a tríplice fronteira por pouco não foi bombardeada pelos americanos, que ainda estavam sob o impacto dos atos terroristas de 11 de setembro de 2001. A Secretaria de Defesa daquele país analisou com cuidado a proposta do general Charles Holland, de retaliar os ataques terroristas bombardeando quatro possíveis alvos fora dos países árabes. Entre eles, a nossa região.

O ataque não ocorreu. Sorte nossa. E deles também, para não ficarem com mais uma cota de vítimas inocentes, já que, em dezembro de 2002, os Estados Unidos, o Brasil, a Argentina e o Paraguai assinaram um documento em que concordavam “não haver informação tática, detalhada e concreta que apoie a teoria sobre a existência de potenciais células ou integrantes da Al Qaeda na tríplice fronteira”.

De fato, nunca se provou nada. Ao contrário, as autoridades americanas que por aqui estiveram sempre desmentiram a existência de quaisquer indícios de existência de células terroristas na região.

De passagem por Foz do Iguaçu, o então secretário-executivo do Comitê Interamericano Contra o Terrorismo, da Organização dos Estados Americanos (OEA), Steven Monblatt, disse no dia 2 de agosto de 2003, que não havia confirmação da presença de grupos terroristas atuando na região. “O Departamento de Estado (órgão do governo dos Estados Unidos) não constatou a presença de nenhuma célula”, afirmou.

A declaração de Monblatt provocou a manifestação da embaixadora dos Estados Unidos no Brasil, Donna J. Hrinak. Em entrevista à revista IstoÉ, do dia 3 de setembro do mesmo ano, a embaixadora Hrinak respondeu: “Todos sabem que há muita criminalidade na tríplice fronteira, com tráfico de armas, drogas e lavagem de dinheiro. Acho que não há país mais preocupado com isso do que o Brasil… Quanto à existência de células terroristas, repito, não temos conhecimento disso. E não sou a primeira a dizer isso. O secretário de Estado Colin Powell já disse isso antes”.

Em 2004, quando visitou a tríplice fronteira, o coordenador do departamento de Estado americano para a luta antiterrorista, Joseph Cofer Black, afirmou que recomendaria as Cataratas do Iguaçu como roteiro de lua-de-mel para seu filho. A declaração não foi suficiente para eliminar suspeitas, que esporadicamente pipocam em reportagens. Na maioria dos casos, são notícias que nada acrescentam de diferente, apenas servem para trazer novamente o assunto à tona.

A imprensa brasileira não se convence. E o que é pior, uma reportagem de Veja sempre repercute, no Brasil e no exterior, sem que se questionar a veracidade das informações. Aliás, isso não é regra geral. O jornal Observador Global (observadorglobal.com), da Província de Santiago del Estero, na Argentina, comentou que “a reportagem da revista teve repercussão nos diários mais importantes do mundo e disparou análises conspiratórias sobre a ameaça islâmica na América do Sul, ainda que as fontes e a informação em que se baseia a investigação sejam bastante débeis”.

No Brasil, os veículos não se limitaram apenas a reproduzir Veja. Preferiram esquentar ainda mais as acusações lançadas pela revista. O Portal Uol e a edição online do jornal O Globo repercutiram: “A Veja citou relatórios da Polícia Federal brasileira e do Governo dos Estados Unidos e revelou que pelo menos 20 membros dos três grupos operam na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina”. Este texto saiu exatamente assim, com pequenas variações, nesses dois veículos e também em outras publicações.

Acontece que a informação de Veja era esta: “…vinte militantes da Al Qaeda, do Hezbollah, do Hamas, do Grupo Islâmico Combatente Marroquino e do egípcio Gama’a al-Islamyya usam ou usaram o Brasil como esconderijo, centro de logística, fonte de captação de dinheiro e planejamento de atentados”.

Veja diz que o esconderijo era no Brasil, não na tríplice fronteira. E enumera cinco organizações terroristas, não três. De onde se deduz: alguém distribuiu, com os erros, a informação de Veja para a imprensa?

O número de terroristas, vinte, também aparece na entrevista concedida à Folha Online pelo israelense Lior Lotan, considerado “especialista em ações de contraterrorismo”, publicada no último dia 21. Diz ele:

“No Brasil, já há no momento duas fortes estruturas terroristas. A primeira está na tríplice fronteira, que alguns apontam como a principal área de levantamento de fundos fora do Oriente Médio para organizações terroristas islâmicas. A segunda é a de que 20 membros da Al Qaeda operam no país e coordenam as atividades em mais de dez países”.

Ele diz, ainda, em tom profético, que “o país deveria se preocupar com a possibilidade de ataques durante a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 e agir para evitá-los”.

É com este mesmo alerta que a reportagem de Veja conclui: “O temor de policiais federais e procuradores ouvidos por Veja é que eles (os terroristas) vejam essas oportunidades na Copa de 2014 e na Olimpíada de 2016”.

Coincidência?

Em outra reportagem (“Os terroristas estão aqui?”), publicada em 12 de março de 2007, a revista Época também concluía: “Na era em que o terror também se globalizou, os especialistas adotaram uma máxima: não perca tempo perguntando se um atentado terrorista vai acontecer; tenha certeza de que ele vai e esteja preparado para detê-lo”.

Estranhas coincidências!!!

A imprensa brasileira parece desconhecer que a imagem de Foz do Iguaçu como antro de terror foi reforçada por uma fantasia. Em novembro de 2001, a repórter da CNN Christiane Amampour entrou num prédio abandonado pela Al Qaeda em Cabul, que fora invadida, e mostrou que havia um pôster das Cataratas do Iguaçu. Apontando para a foto, ela disse que aquele local era onde autoridades do setor de inteligência dos Estados Unidos diziam ter identificado células terroristas ligadas a Osama bin Laden e à Al Qaeda. Mais tarde, descobriu-se que a foto mostrada pela CNN não era das Cataratas do Iguaçu, o que rendeu uma ação judicial da Prefeitura de Foz do Iguaçu contra a rede de TV.

São reportagens como essas, de Veja e outros veículos, quase sempre sem ouvir o lado dos suspeitos, que aumentam o preconceito contra a tríplice fronteira. A ponto de surgirem bobagens como a dita no Twitter pela cantora Paula Toller, do grupo Kid Abelha, quando veio fazer um show no último dia 15 de abril: “Tríplice fronteira sinistra, dizem que Bin Laden mora aqui e ninguém repara, pq todo mundo se parece com ele”. O comentário teve tanta repercussão – negativa – que ela imediatamente apagou-o. E pediu desculpas em seguida.

Preconceito à parte, como se pode culpar a cantora – que vive no Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, livre de problemas de toda ordem! – pela ignorância sobre Foz e a região?

Ao requentar assunto já vencido, a revista Veja presta um desserviço aos seus leitores e dá uma lição de mau jornalismo. Para concluir, basta repetir o que disse o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota: “a presença de terroristas na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai não passa de especulação”. De acordo com o ministro, “na região existem imigrantes e descendentes de árabes e palestinos que, com certeza, mandam recursos financeiros a seus países, como acontece com qualquer imigrante em qualquer país do mundo”.

Mas afirmação assim não ganha destaque em nenhum órgão de imprensa. E, certamente, a tríplice fronteira continuará alvo de especulações, de acusações levianas, de preconceito e desconhecimento.

No entanto, estaremos sempre prontos a refutar aquilo que consideramos uma afronta aos que aqui vivem, trabalham e lutam pela transformação desta região num exemplo de convivência pacífica para todo o mundo.

*Gilmar Piolla é jornalista, superintendente de comunicação social da Itaipu Binacional e presidente do Fundo de Desenvolvimento e Promoção Turística do Iguaçu – Fundo Iguaçu.

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